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“Guerra” das torcidas uniformizadas. Existe alguma solução?
O surgimento das torcidas uniformizadas no Brasil data da década de 40, cujo objetivo maior era incentivar os jogadores. Entretanto, há tempos, esta finalidade foi desviada e as uniformizadas se tornaram “Legiões”.
Todos os anos são registradas ocorrências de confrontos entre as uniformizadas, vandalismo ao patrimônio público e privado e, vem crescendo as intimidações aos jogadores do próprio clube com cobranças de desempenho.
O resultado desses confrontos que ocorrem fora das arenas, antes e depois das partidas, muitas vezes, são feridos e mortos.
Realizamos uma busca nas notícias publicadas com objetivo de obtermos uma estimativa no período de 1988 – 2023, da quantidade de pessoas que morreram nesses confrontos. (lembrando que no Brasil não encontramos uma base de dados confiável, além das subnotificações[1]).
Vejam como ficou o gráfico:
Observe que 288 pessoas já perderam a vida nessa “guerra”. HOLLANDA (2016) em um artigo, apresenta uma pesquisa quantitativa com torcidas organizadas no Rio de Janeiro e São Paulo, onde apresenta um perfil etário do torcedor organizado, veja o gráfico abaixo:
Observe que são os jovens em sua maioria, isto é, uma idade de descobertas e autoafirmação, especialmente em grupos sociais.
Pesquisamos alguns trabalhos acadêmicos e artigos científicos, com objetivo de estabelecer um provável “perfil comum de comportamento” desses integrantes das torcidas organizadas.
Ao encontro do nosso objetivo, PALHARES (2012), ressalta que “os resultados advindos dos estudos pesquisados indicam que, independentemente da gênese do comportamento violento e de suas causas, a mudança no comportamento individual quando em presença de um grupo é um fator importante em relação à violência futebolística”. A mudança do comportamento seria composta por dois principais motivos: a reunião de muitas pessoas e a comunhão de regras e valores das mesmas.
O primeiro motivo, TOLEDO (1996, p. 86, citado por PALHARES (2012)) aponta que: “[…] este comportamento de massa tende a alterar certos valores, expectativas, sentimentos e o sentido das ações individuais”. Desta forma, tal ambiente grupal pode representar uma válvula de escape para a manifestação de condutas agressivas. Dentro desta mesma esfera, os torcedores organizados necessitam de distância real e simbólica dos torcedores comuns. Querem ser reconhecidos como únicos (TOLEDO, 1996). PIMENTA (1997, p. 95), a esse respeito, aborda que os torcedores também possuem outros papéis sociais, no entanto, quando estão presentes neste grupo das torcidas organizadas, assumem a identidade coletiva de “[…] intimidação, masculinidade, truculência, força física e tensões emocionais.”
O segundo motivo, PALHARES (2012), coloca que usar a camiseta de uma torcida organizada “[…] reforça o compromisso com o grupo.” (TOLEDO, p. 57 citado por PALHARES (2012)). Com isso, pode-se dizer também que a camiseta é um símbolo de reforço do sentimento de pertencimento a esse grupo. Outra postura que normalmente é assumida é a de rivalidade, pois o pertencimento ao grupo reforça identidades, solidariedade e oposições, conforme salienta Toledo (1996). A rivalidade, muitas vezes, pode gerar a violência de uma forma extrema, sendo assim, há necessidade de separação espacial, o que já se tornou uma praxe nos estádios.
No mesmo estudo, PALHARES (2012) ressalta que, a centralidade do futebol gera um sentimento coletivo em torno do clube. Este sentimento pode fazer com que o torcedor não estabeleça claramente os limites entre a sua identidade e a do outro (REIS, 2006 citado por PALHARES (2012)). Por este motivo, existem casos de torcedores, que passam a interferir em questões pessoais de jogadores, causando situações desagradáveis como perseguições e cobranças excessivas
A partir destas críticas, PALHARES (2012) destaca que o olhar é dirigido para se analisar os meios de comunicação, especialmente, televisão e rádio. Em ambos existem programas exclusivos de futebol. Cabe ressaltar, o grande acesso da população, principalmente a urbana, aos meios de comunicação.
Tomando-se por foco a linguagem, percebe-se que diversas letras de músicas cantadas pelas torcidas estimulam a violência e possuem alta conotação e denotação violenta e/ou agressiva (REIS, 1998 citado por PALHARES (2012)).
A falta de medidas punitivas pode também podem reforçar a violência, pois os praticantes de agressão se sentem mais à vontade para cometerem delitos.
Reforçando o que encontramos na literatura, segue uma experiência pessoal: Em 1980 eu e meu irmão fomos assistir a um jogo do Palmeiras x São Paulo no estádio do Morumbi. Morávamos próximo ao Parque Antártica. Visando economia no transporte, fomos no ônibus de uma torcida uniformizada, que cobrava um valor único (ida-volta). Durante o percurso de ida, ficamos abismados com os “gritos de guerra” dos integrantes uniformizados, tais como: “….vai morrer!!!”; “….é o terror”. Torcedores de outros times arremessavam ovos contra o ônibus que estávamos (fui atingido por um!). Chegando ao estádio, ficamos na arquibancada, separados dos integrantes dessa torcida, que nos levou ao estádio. Antes e durante o jogo, muitos torcedores (independentemente de ser ou não de alguma uniformizada) urinavam em sacos de lixo ou copos de cerveja, e os lançavam arquibancada abaixo, como se fosse um show. Podemos imaginar a mentalidade desses indivíduos.
Ao término da partida (São Paulo 1 x 0 Palmeiras) começamos a deixar as arquibancadas, quando alguns torcedores (uniformizados ou não) revoltados com o resultado, iniciaram um quebra-quebra nas telhas das cabines de rádio do estádio. Resultado: A polícia (tropa de choque) foi acionada e espremeu os torcedores no túnel de acesso às arquibancadas, distribuindo cassetete para todo lado (inclusive fui atingido. Além da dor, o vergão levou 1 mês para desaparecer!). Depois disso, os “torcedores” se acalmaram. Então, entramos no ônibus e iniciamos a viagem de volta.
Durante o percurso, os torcedores avistaram um torcedor do São Paulo caminhando com sua namorada embaixo do elevado Costa e Silva (vulgo: minhocão). Ordenaram ao motorista que parasse o ônibus imediatamente, e desceram para atacar o são paulino. Deram uns tapas no são paulino, o fizeram tirar a camisa, ateando fogo na mesma. (percebem a associação com fações criminosas ou Bando?). Depois voltaram para o ônibus e chegamos ao Parque Antártica novamente.
A verdade é que não tratava- se de uma torcida uniformizada, e sim um Bando, ou seja, um grupo de torcedores que se colocam como “defensores” de uma determinada agremiação.
O jovem sente-se livre das cobranças no emprego, dos pais e, quando se junta com os demais integrantes, entende que não está sujeito às normas de convivência social, às Leis, não precisando ter nenhum senso de responsabilidade.
É como se fosse o “passaporte” para sua “liberdade de expressão”. Um lugar (espécie de Reino) onde não existem limites comportamentais.
O fato é que os integrantes das torcidas que se autodenominam “organizadas” são, em sua maioria, jovens que vislumbram uma oportunidade de ser um indivíduo respeitado, admirado, ovacionado, consagrado, não importando sua condição ou classe social, inclusive não necessitando de usar a inteligência. Em suma, o pré-requisito para ser admitido é a força física e/ou disponibilidade para atuar em bando nos confrontos nas ruas e nos estádios.
Caro Leitor (a), o que é mais assombroso nesse caso, é que esse padrão de comportamento tem sua origem na educação que esse jovem recebeu dos seus pais. Isso mesmo, os pais são “modelos de comportamento” para seus filhos, ou seja, a maneira como se comportam em situações do cotidiano (inclusive torcendo pelo time de coração) torna-se um referencial fundamental para sua formação. Isso significa que, se os pais são agressivos, adeptos da (famosa) “Lei de Gerson”: “gosto de levar vantagem em tudo, certo?”, dirigem perigosamente, dão valor aos bens materiais, furam fila na padaria, banco, no trânsito, jogam lixo pela janela do carro, xingam o torcedor do time adversário, ou até mesmo agridem (verbal ou física) outras pessoas. A criança assimilará todos os valores comportamentais de modo espontâneo e inconscientemente (2).
Cabe ressaltar que isso não quer dizer que a culpa é única e exclusivamente dos pais, mas é preciso entender que a base da educação e formação da criança é a família e não a escola. Se o jovem teve uma base pouco estruturada, uma convivência desagregada com amigos, e se torna membro de uma torcida uniformizada, podemos prever o resultado.
Temos que disseminar ideias e comportamentos positivos no nosso cotidiano.
Portanto Leitor (a), não há uma resposta clara à nossa pergunta no título do artigo. Talvez estabelecer Leis mais rígidas seja o caminho para inibir os confrontos e o vandalismo (Lei nº 14.597 (14/06/2023) – Institui a Lei Geral do Esporte), mas não existe (e nem existirá) recurso jurídico que possa interferir na educação e formação do jovem, obrigando os pais a adotarem um comportamento social plausível.
Os clubes estão investindo nos programas de sócio torcedor, com intuito de fidelizar os torcedores e as torcedoras. Isso limitou o espaço destinado às torcidas uniformizadas nas arenas. Entretanto, acredito que as torcidas uniformizadas não deixarão de existir. (veja o gráfico da quantidade de sócios torcedores dos 20 clubes da série “A” do Campeonato Brasileiro).
Eu acredito que a resposta está em nossas mãos.
Não podemos aceitar desvio de comportamento como algo comum, simples e/ou inevitável.
Nada de agirmos ou pensarmos para as futuras gerações, temos que agir e pensar agora.
Agora, É Com Você!
Engº Ricardo Ribeiro.
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[1] Utilizamos como base, um levantamento realizado pelo jornal Lance Net, no período de 1998-2011 com 155 mortes.
(2) Influência dos pais é irresistível – Educar bem
Literatura consultada e referenciada:
ALMEIDA et ali (2006) – A Influência das práticas educativas dos pais sobre o comportamento dos filhos – Revista Terra e Cultura, nº 43, Ano 22, Julho a Dezembro 2006.
Chaim (2018) – Futebol, corações e mentes: Os torcedores na perspectiva do Estado – – São Paulo – Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP – 314f.
HOLLANDA (2016) – Violência, juventude e idolatria clubística: Uma pesquisa quantitativa com torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro e em São Paulo – Revisa Hydra, vol 1, nº 2, agosto de 2016.
Nolte, Dorothy Law e Rachel, Harris – As crianças aprendem o que vivenciam – O poder do exemplo dos pais na educação dos filhos – Editora Sextante.
PALHARES et ali (2012) – Lazer, agressividade e violência: considerações sobre o comportamento das torcidas organizadas – Motriz, Rio Claro, v.18 n.1, p.186-199, jan./mar. 2012.
PALHARES (2012) – Torcidas organizadas e jornalismo esportivo: discursos sobre violência no futebol – São Paulo – Tese (Doutorado) – Escola de Educação Física e Esporte da USP – 234p.
VALVERDE (2022) – Os usos da discórdia: a territorialidade das torcidas organizadas como pretexto para intervenções público-privadas nos espaços do futebol – Revista do Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP – Artigo.
Sugestão de leitura: “A influência dos pais na criação e formação dos filhos” (Mathias Naganuma) | A INFLUÊNCIA DOS PAIS NA CRIAÇÃO E FORMAÇÃO DOS FILHOS | Mathias Naganuma